quarta-feira, 10 de junho de 2009

LEONARDO BOFF
O século dos direitos da Terra
08 Mai 2009

A afirmação mais impactante do discurso do presidente da Bolívia, Evo Morales Ayma, em 22 de abril, na Assembléia Geral da ONU, ao se proclamar aquela data como o Dia Internacional da Mãe Terra, talvez tenha sido a seguinte: “Se o século XX é reconhecido como o século dos direitos humanos, individuais, sociais, econômicos, políticos e culturais, o século XXI será reconhecido como o século dos direitos da Mãe Terra, dos animais, das plantas, de todas as criaturas vivas e de todos os seres, cujos direitos também devem ser respeitados e protegidos”. Aqui já nos defrontamos com o novo paradigma, centrado na terra e na vida. Não estamos mais dentro do antropocentrismo, que desconhecia o valor intrínseco de cada ser, independentemente do uso que fizermos dele. Cresce mais e mais a clara consciência de que tudo o que existe merece existir e tudo o que vive merece viver. Conseqüentemente, devemos enriquecer nosso conceito de democracia no sentido de uma biocracia ou democracia sociocósmica porque todos os elementos da natureza, em seus próprios níveis, entram a compor a sociabilidade humana. Nossas cidades seriam ainda humanas sem as plantas, os animais, os pássaros, os rios e o ar puro? Hoje, sabemos pela nova cosmologia que todos os seres possuem não apenas massa e energia. São portadores também de informação, possuem história, se complexificam e criam ordens que comportam certo nível de subjetividade. É a base científica que justifica a ampliação da personalidade jurídica a todos os seres, especialmente aos vivos. Michel Serres, filósofo francês das ciências, afirmou com propriedade: “A Declaração dos Direitos do Homem teve o mérito de dizer ‘todos os homens têm direitos’, mas o defeito de pensar ‘só os homens têm direitos”. Custou muita luta o reconhecimento pleno dos direitos dos indígenas, dos afrodescendentes e das mulheres, como agora está exigindo muito esforço o reconhecimento dos direitos da natureza, dos ecossistemas e da Mãe Terra. Como inventamos a cidadania, o governo do Acre de Jorge Viana cunhou a expressão florestania, quer dizer, a forma de convivência na qual os direitos da floresta e de todos os que vivem dela e nela são afirmados e garantidos. O presidente Morales solicitou à ONU a elaboração de uma Carta dos Direitos da Mãe Terra cujos tópicos principais seriam: o direito à vida de todos os seres vivos; o direito à regeneração da biocapacidade do Planeta; o direito a uma vida pura, pois a Mãe Terra tem o direito de viver livre da contaminação e da poluição; o direito à harmonia e ao equilíbrio com e entre todas as coisas. E nós acrescentaríamos o direito de conexão com o todo do qual somos parte. Esta visão nos mostra quão longe estamos da concepção capitalista, da qual ficamos reféns durante séculos, segundo a qual a Terra é vista como mero instrumento de produção, sem propósito, um reservatório de recursos que podemos explorar a nosso bel prazer. Faltou-nos a percepção de que a Terra é, verdadeiramente, nossa mãe. E mãe deve ser respeitada, venerada e amada. Foi o que asseverou o presidente da Assembléia, Miguel d’Escoto Brockmann, ao encerrar a sessão: “É justíssimo que nós, irmãos e irmãs, cuidemos da Mãe Terra, pois é ela que, ao fim e cabo, nos alimenta e sustenta”. Por isso, apelava a todos que escutássemos atentamente os povos originários, pois, a despeito de todas as pressões contrárias, mantêm viva a conexão com a natureza e com a Mãe Terra e produzem em consonância com seus ritmos e com o suporte possível de cada ecossistema, contrapondo-se à rapinagem das agroindústrias que atuam por sobre toda a Terra. A decisão de acolher a celebração do Dia Internacional da Mãe Terra é mais que um símbolo. É uma viragem no nosso relacionamento para com a Terra, escapando do padrão dominante que nos poderá levar, se não fizermos transformações profundas, à nossa autodestruição.